O sonho do paraíso perdido é tão antigo quanto a humanidade. Na mitologia suméria, já encontramos o conceito de um lugar onde os animais vivem juntos em harmonia e o homem é imune às doenças – e ainda sonhamos com essa utopia. E, talvez, mesmo hoje, existam na Terra lugares que se assemelhem ao sonho…
O sonho do paraíso perdido é tão antigo quanto a humanidade. Na mitologia suméria, já encontramos o conceito de um lugar onde os animais vivem juntos em harmonia e o homem é imune às doenças – e ainda sonhamos com essa utopia. E, talvez, mesmo hoje, existam na Terra lugares que se assemelhem ao sonho…
Os geólogos nos contam que, durante o Terciário, a parte central inteira da atual bacia amazônica era um gigantesco mar interior, limitado, ao norte, por uma ilha arqueana (agora, o Maciço Guiano) e, por outra, no sul (planalto central). Com o decorrer do tempo, o mar interior foi dramaticamente alterado por atividade tectônica – a terra subiu e desceu, bar-reiras naturais se formaram, rios começaram a fluir. Tempestades de proporções imensuráveis (como as que ainda ocorrem no Amazonas, a maior região de floresta do mundo), inundação após inundação e vendavais constantes esculpiram a paisagem. E o Rio Grande, o Mar Doce, o Amazonas, nasceu.
Finalmente, esse “trabalho árduo” da natureza deu origem a Mbarayó. Sedimentos acumulados por milhões de anos, arrastados dos Andes pelas incríveis massas de água que constituem o sistema amazônico (especialmente quando a neve derrete), e depositados pelo rio no local em que ele encontra o mar, produziu a imensa ilha que vemos hoje. Através dos milênios, Mbarayó movimentou-se vagarosamente para o leste, em direção ao Atlântico, como resultado de um processo de erosão e sedimentação, que ainda continua, ano após ano.
À medida que a ilha se formava, o rio era forçado a se ramificar em ambos os seus lados, para alcançar o mar. Atualmente, ele flui, de fato, através da verdejante parte sudoeste da ilha, através de canais e regatos, conhecidos localmente como furos e estreitos, e dos Canais de Breves (Breves é uma cidade na área).
Marajó é, na verdade, um vasto e pitoresco labirinto aquático, em constante mudança, um mundo inteiramente dinâmico em si mesmo. Por um lado, isso é consequência da sua origem e da forma de ilha e, por outro, devido às águas do Rio Tocantins, o último grande tributário da margem direita do Amazonas, que, por milênios, solapou continuamente o solo, criando sempre novos canais. Algumas áreas foram completamente cortadas, para formar pequenas ilhas separadas. O fluxo e refluxo das marés – cujos efeitos são sentidos 1200 km rio acima – também desempenharam o seu papel na criação desse labirinto.
São essas as influências responsáveis pela criação do Estreito de Breves, o único canal com profundidade suficiente para navios transatlânticos (que podem navegar 3.000 km rio acima), que fica a sudeste e é considerado como a fronteira oficial entre a ilha e o continente. Aqui, o Tocantins se junta ao braço meridional do Amazonas, chamado, nesse ponto, de Rio Pará, e suas águas fluem juntas para o Atlântico. Ao norte, a boca do Amazonas é chamada de Baía do Vieira Grande e os dois braços principais são denominados Canal Perigoso e Canal do Sul.
Os incontáveis canais que cruzam a ilha levam nomes que lembram as tribos indígenas há muito extintas, como Anajás, Araraquara, Atatá, Atuá, Camará, Cajuuba, Camutim, Canaticu, Charapucu, Curuacá, Mapuá, Muaná, Paracauari, Pracuuba e Tamaquari, para mencionar somente algumas poucas. Os nativos conheciam essa área singular na boca do vasto rio, comparável a uma cidade moderna, tendo por ruas as águas, e denominaram-na Mbarayó.
Mas essa maravilha da natureza tem o seu lado negativo, no que diz respeito ao homem. Durante os cinco meses, aproximadamente, da estação das chuvas, a maior parte de Marajó fica sob as águas – o ponto mais alto da ilha está somente a 15 metros acima do nível do mar. Os índios contornaram esse problema construindo suas casas em palafitas, e isso se reflete, hoje, nos prédios e plataformas de embarque e desembarque. A única forma de locomoção é o barco! Entretanto, durante a estação da seca (de maio a novembro, aproximadamente), a maioria dos canais e igarapés (braço estreito de rio) seca completamente e as canoas dão lugar aos cavalos e veículos com tração nas quatro rodas.
Os indígenas
Vários itens de barro que mostram os padrões geométricos, ainda não decifrados,
das tigelas (1, 3, 4 e 9), vasos ornamentais (5 e 6) e igaçabas tradicionais (2, 7, 8).
Os indígenas mais conhecidos da ilha fluvial são os Aruãs, famosos por suas cerâmicas elaboradas, algumas das quais ainda existem hoje. Juntamente com os Anajás, Guajarás, Jurunas, Mapuás, Mamaiaucás e Sacarás, eles formam uma única grande família, os Aruaques. Os portugueses chamavam a todos nhengaíbas (um termo cujo significado exato é desconhecido), visto que cada tribo falava o seu próprio dialeto e eles não compreendiam nenhum deles! Cada grupo também possuía a sua própria cultura e tradições.
Supostamente, os Aruãs foram expulsos da ilha antilhana de Lucaias pelos índios Caraíbas, há centenas de anos e, após uma perigosa viagem através do mar aberto, aportaram as suas canoas em Mbarayó. Aqui, construíram novas casas e desenvolveram sua arte cerâmica altamente especializada. O significado dos fascinantes motivos geométricos pintados em seus potes de barro jamais foram decifrados – os segredos dessas marcas e de sua escrita desapareceram com a tribo. A maioria dos tesouros dos Aruãs encontra-se, agora, nos museus da Europa e América, bem como no Goeldi, em Belém. Grandes quantidades de
tigelas, panelas, jarras, pratos e copos e inúmeras igaçabas (urnas funerárias) foram desenterradas nos últimos 150 anos e, indubitavelmente, outros cemitérios em Marajó ainda estão por ser descobertos.
Presume-se que a cerâmica e a decoração eram feitas pelas mulheres. Muitos vasos são decorados com linhas, cruzes e triângulos, limpidamente traçados, bem como peixes, aves, olhos, sapos, cobras, aranhas, machados e arcos. Mas não temos idéia do seu significado. Os Aruãs deixaram o maior acervo de descobertas arqueológicas de toda a bacia amazônica. Nenhuma das outras 500 ou mais tribos que viveram na região alcançaram qualquer coisa remotamente similar; somente as culturas pré-incaicas e os índios do planalto central produziram algo comparável.
As igaçabas magnificamente pintadas são invariavelmente encontradas sob montes de terra preta, uma característica que indica ligação com o enorme grupo de tribos sul-americanas conhecidas como mound-builders (fazedores de montes). Muitos desses montes foram descobertos: ao longo de somente um rio, o Camutim, mais de 40 cerâmios (denominação dada pelo antropologista Domingos Soares Ferreira, fundador do Museu Goeldi – e o nome pegou) foram encontrados. O mais famoso e bem preservado cerâmio encontra-se na margem oriental do Lago Arari, próxima à foz do Igarapé das Almas. O local é conhecido como Ilha do Pacoval, embora aí não exista ilha – pelo menos durante a estação da seca. Entre a população local, a ilha denota nada mais do que um grupo de árvores ou bananeiras no meio dos campos e existe tal grupo nesse ponto….
Os Aruãs, como todas as outras tribos, já haviam desaparecido completamente por volta do século 18 e, com eles, a sua língua e os segredos de sua cultura altamente desenvolvida. Massacrados pelos colonizadores, vítimas das doenças do homem branco ou, talvez, simplesmente tenham desaparecido
na vastidão da floresta amazônica.
O último Aruã, um homem idoso, ainda sobrevivia em Marajó, em 1877, mas conhecia somente umas poucas pala-vras de sua língua nativa e mesmo essas haviam sido corrompidas pela influência portuguesa…
No entanto, uma palavra Aruã sobreviveu e é conhecida em todo o mundo: matamatá, o nome de uma estranha tartaruga pré-histórica, Chelius fimbriatus. A palavra foi adotada, primeiramente, pelos índios Tupi e, depois, pelos portugueses e, finalmente, pelo mundo todo. Infelizmente, essa espécie agora rara está, ela própria, ameaçada de extinção e, se isso acontecer, o que realmente terá restado dos Aruãs será o seu nome e a sua cerâmica…
Os primeiros europeus
Oficialmente, o navegador espanhol Vicente Yañez-Pinzón foi o primeiro europeu a alcançar Marajó. Ele desembarcou em Porto Seguro, na Bahia, em 21 de abril de 1500, após ter atracado ao largo da ilha, na boca do rio, em algum dia de fevereiro, antes de ancorar no nordeste do Brasil. Nas anotações de seu diário de bordo, pode-se ler: “La boca de Rio Grande el Mar Dulce que sale quaranta leguas en el mar com la aqua dolce”. Mas o documento Navarrete, “Viagens de Américo Vespúcio”, afirma que este último (Américo) visitou uma grande ilha ao sul do Equador, em 1499, e foi recebido com hospitalidade pelos Aruãs. Entretanto, o crédito fica com Pinzón. A ilha foi chamada, primeiramente, de Ilha Grande de Joanes (Yañez), antes que o nome Índigeno fosse revivido.
Quando os reinos espanhol e português se separaram por volta de 1640, os Aruãs ainda eram os regentes inquestionáveis de Mbarayó, e também haviam desenvolvido um bom relacionamento com os holandeses, que haviam construído uma fortaleza no outro lado da ilha, em Belém. Os portugueses consideraram isso como um insulto ao seu rei e à igreja católica, massacraram os holandeses e, posteriormente, os ingleses e franceses. Então, em 23 de dezembro de 1655, eles se declararam os donos da ilha e fundaram a Capitania da Ilha Grande de Joanes. Antonio de Souza Macedo foi empossado com o titulo de Barão, mas também falhou em colonizar Mbarayó.
Um autor desconhecido naquela epoca escreveu: “Desde o começo, o arquipélago foi, por muito tempo, o palco de combates sangrentos. Diversas nações empenharam-se em subjugar os nativos. Frotas portuguesas inteiras (para não mencionar uma esquadra de 130 canhões) foram afugentadas pelos índios.” A tão desejada pacificação dos nativos somente foi conseguida quando o jesuíta Antônio Vieira fez uma visita pastoral aos Aruãs, em 1659. Foi, portanto, somente através da introdução do cristianismo que os portugueses conseguiram se estabelecer em Mbarayó e começar a sua conquista da região Amazônica.
Os Campos
Cerca de 23.000 km2 da ilha consistem de campos, pastagens sem árvores, terra ideal para gado. Um marceneiro português, Francisco Rodriguez Pereira, reconheceu rapidamente a possibilidade e aproveitou a oportunidade. Ele fundou a primeira fazenda na margem do Rio Arari, em 1680, importando o seu gado das ilhas de Cabo Verde, no outro lado do Atlântico (ver ag no. 5 edição ingles). No início do século seguinte, os padres católicos começaram a construir estábulos, e, logo em seguida, os jesuítas e carmelitas fizeram o mesmo. Por volta de 1746, já existiam 480.000 cabeças de gado nos campos de Marajó e a pecuária havia se tornado tão importante que escravos negros tiveram que ser importados da África, através de Cabo Verde, visto que os índios da floresta se recusaram a trabalhar nos campos.
Em 2 de agosto de 1758, quando o rei de Portugal, Dom José I, exilou os jesuítas do estado do Pará (no qual está Marajó), confiscou as suas 60.000 cabeças de gado bem como uma parte da melhor pastagem da ilha, ele não poderia imaginar as consequências. Os novos proprietários não tinham qualquer noção sobre a criação de gado, nem os funcionários e outros “manda-chuvas” do Pará que assumiram posteriormente, e as fazendas dos Jesuítas caíram em ruínas. Mas os membros da Ordem da Misericórdia, que ainda possuíam a maioria das fazendas, continuaram a administrar o seu gado com sucesso, até que, em 1795, o Papa Pio VI emitiu uma proclamação comandando todos os membros da ordem a voltarem a Portugal. Todas as fazendas e gado se tornaram, então, propriedade do Estado, uma situação que permaneceu por cerca de cem anos. Em 1895, o Estado vendeu toda a terra para pessoas físicas; a Sociedade Pastoril de Marajó foi fundada e desde então a criação de gado, búfalo (importado da África e Índia) e cavalos continuou praticamente inalterada. A Sociedade sobrevive até hoje.
A floresta e outras vegetações
Hoje, como no passado, a parte sudeste de Marajó é coberta por densa floresta tropical, que termina, abruptamente, onde os campos a leste começam. Quase 26.000 km2 são cobertos, em sua maioria, por mata primária. Cruzada por furos, igarapés, canais e várzeas (zonas de inundação), essa parte da ilha é típica da região amazônica. A Hevea brasiliensis cresce livremente aí (plantações remontam a 1840), mas a borracha não é mais colhida (não lucrativa). As principais colheitas incluem azeite de dendê e (infelizmente, ainda) as muito procuradas madeiras-de-lei, como acapu, cedro, jarana, angelim, bacuri, ipê, andiroba, maçaranduba, pau-marfim, itaúba e cumaru.
Como em muitas partes da Amazônia, a riqueza da flora é impressionante. Ela proporciona à população local óleos de diversas sementes, frutas silvestres como o açaí, bacaba, buriti, patauá, pupunha e algo que é frequentemente esquecido mas, que, atualmente, está “na moda”, um exército de plantas medicinais. Marajó é hábitat da ipecacuanha, copaíba, salsaparrilha, tingui, assacu, canambaia, timbó, mucuracaá, urucu e muitas outras. Plantas que, agora, formam a base dos medicamentos usados em todo o mundo.
Não devemos nos esquecer da palmeira que dá os palmitos, uma guloseima apreciada em todas as partes do mundo. Infelizmente – como aconteceu anteriormente na área em torno de Belém – essas palmeiras foram tombadas indiscriminadamente, sem que houvesse reposição. Em outras partes, florestas inteiras estão desaparecendo e resta saber se isso também acontecerá em Marajó. Nós, da ag, esperamos sinceramente que o Homem pense duas vezes antes de dar livre curso a tal destruição….
As viagens nessa parte da ilha diferem dramaticamente das dos campos. Neles é normal se viajar a pé, a cavalo ou em carro de boi – praticamente não existem estradas em Marajó, exceto nas poucas cidades, mas aqui a piroga, o barco a motor ou a lancha (= casa flutuante) são as únicas formas de transporte. Estes últimos ainda são o principal meio de transporte através da imensa região amazônica.
Répteis, anfíbios, mamíferos e caçada
Existem poucas informações publicadas sobre os animais da ilha. A fauna é basicamente amazônica e não existem espécies endêmicas conhecidas.
Como no restante da Amazônia, os jacarés raramente são vistos, uma vez que foram massacrados, aqui como em outras partes, devido a suas peles. Existem duas espécies, o jacaré de lunetas (Caiman crocodilus crocodilus) e o jacaré-açu (Melanosuchus niger). Ainda existem iguanas (Iguana iguana), mas da forma que as coisas estão indo, não por muito tempo – as fotos nestas duas páginas ilustram os problemas enfrentados por esses lagartos grandes. Elas são caçadas e abatidas impiedosamente. A desculpa é “Temos que viver”. As peles são vendidas para a indústria de couro, para a fabricação de sapatos, cintos e outros artigos (atualmente, biquinis e camisas de couro estão, de novo, na moda), enquanto exemplares empalhados vão para as lojas de recordações. A carne termina no mercado e, finalmente, na panela. É mais barata que carne de vaca, afinal, só exige um pouco de tempo (ou um tiro)….
Sapos e cobras são menos ameaçados, embora a maioria dos ilhéus – como quase todos os brasileiros – são da opinião de que o único animal bom é o animal morto! (Confessadamente, o pessoal da cidade pensa de forma diferente, mas não são eles que estão fazendo a matança.) A enorme anaconda (Eunectes murinus), a maior cobra da Terra, é comumente, e, na verdade, habitualmente, encontrada na água e, em geral, é poupada (em contraste com outras histórias de terror). Os mamíferos incluem as raposas
(Dusicyon thous), que são comuns; onças e maracajás (jaguatiricas) ainda podem ser vistos, ocasionalmente, relampeando através da floresta, assim como vários macacos e tamanduás.
Lamentavelmente, o peixe-boi (Trichechus inunguis) não pode mais ser encontrado, e, nas últimas poucas décadas, foi visto somente algumas vezes pelos habitantes locais (ver, também, ag no. 6 edição inglesa).
Entretanto, uma subespécie antilhana (T. manatus manatus) aparece, de vez em quando, na área da embocadura do rio e ao longo da costa leste da ilha. Por outro lado, o golfinho amazônico (Inia geoffrensis) aparece regularmente.
A capivara (Hydrochaeris hydrochaeris), o maior roedor do mundo, é caçada implacavelmente – ela também é considerada “carne barata”. Outros roedores menores, como as cotias e pacas, não despertam tanto interesse, mas ainda acabam na panela, se derem de cara com um caçador…
A avifauna
Eudocimus ruber
Em comparação, Marajó é o paraíso das aves, uma verdadeira arca do tesouro de pássaros. Quando o “inverno” chega ao fim e o verão (estação da seca) começa, as árvores e pastagens se transformam em uma massa incomparável de cor. O céu se torna vermelho com o fantástico guará (Eudocimus ruber), branco, com garça-branca grande (Casmerodius albus, anteriormente Egretta alba) e rosa, com os colhereiros (Ajaia ajaia). Centenas de espécies cruzam a ilha, a caminho de seus ninhos. Milhares de pássaros, em todas as cores do arco-íris, transformam a paisagem em uma pintura que a máso humana não poderia reproduzir.
As esplêndidas fotos (pelo francês Roger Lequen) destas páginas permitem um vislumbre desse paraíso dos pássaros e da “Fazenda do Íbis”, na parte oriental da ilha. Em nenhum lugar do mundo existe algo que possa ser comparado com essas fotos incríveis – a não ser, naturalmente, o verdadeiro, em Marajó, a maior ilha fluvial do mundo.
Os peixes
representando a fonte mais importante de renda para Marajó.
Eles incluem espécies ornamentais, como o singular fantasma negro (Apteronotus albifrons) (à esquerda).
todos os lugares, são uma guloseima especial……
Devido à singular entremesclagem de terra e água existente em Marajó, a fauna de peixes também é incrivelmente rica, especialmente nos lagos, dos quais o Arari é o maior e mais conhecido. Ele corre no centro geográfico da ilha e tem mais de 120 km de extensão, de norte a sul. Muitos rios de vários tamanhos fluem para esse lago – e fora dele – sendo o maior de todos o Rio Arari. Esse labirinto de vias navegáveis supre constantemente os campos com a umidade essencial.
Depois do gado, o peixe é a fonte mais importante de renda para os caboclos. Toda manhã eles levam (da noite anterior) a pescaria ao mais conhecido mercado de pesca de toda a Amazônia, o Ver-o-Peso, em Belém. Os pescadores da vila de Genipapo e Santa Cruz, na margem do Lago Arari, são os representantes atuais de uma antiga tradição. Eles pescam de setembro até o fim da estação da seca (dezembro/janeiro), que não é somente o início da estação de desova mas também a época em que o nível do rio sobe tão rapidamente, inundando as florestas e campos, impossibilitando a pescaria. Marajó se transforma em uma vasta zona de inundação – é comum que o gado se afogue e que as palafitas desabem na enchente. Nessa estação, a pesca cessa em toda a região Amazônica e a Natureza reina suprema.
A variedade de espécies de peixe é enorme. Os principais peixes comestíveis incluem a pescada (um peixe do mar encontrado em água doce), tucunaré (Cichla sp.), traíra (Hoplias malabaricus), acari, aruaná (Osteoglossum bicirrhosum), aracu, apaiari, mandi (Pimelodus cf blochi), tainha, tambaqui (Colossoma brachypomum), bodó (Hypostomus sp.), e a piranha (Serrasalmus sp.). A maioria dos nomes locais são de origem indígena, aplicados a certas espécies conhecidas cientificamente.
Os Aruãs pescavam somente com arco e flecha, usando um tipo diferente de flecha para praticamente cada espécie. Para o maior peixe de água doce do mundo, o pirarucu (Arapaima gigas), algumas vezes chamado de “peixe de rabo de fogo”, eles esculpiam lanças de madeira-de-lei. Os caboclos usam principalmente a tarrafa (rede de pesca), o arpão (de um tipo que se lança com as másos), rede e armadilhas especiais de cestos, sendo o cacuri o mais especializado desses métodos. Essas armadilhas grandes, que são dispostas em forma de coração, com partes móveis habilmente projetadas, são a feliz invenção dos pescadores de Marajó, e funcionam tanto na maré vazante como na cheia. Os pescadores têm tanto orgulho do seu cacuri que compuseram uma música sobre ele: “Casamento é como cacuri: quem está fora quer entrar, quem está dentro, quer sair”…
Assim como os peixes comestíveis, existem, naturalmente, um grande número de espécies menores. Umas poucas são pescadas durante a estão da seca para exportação a aquaristas em todo o mundo. Um dos mais incomuns é o sarapó preto (A. albifrons), um peixe preto como veludo, com formato de lâmina de faca (sem o cabo), que é capaz de nadar para trás. A sua única marca é uma lista esbranquiçada no pedúnculo caudal, que, entretanto, desaparece com a idade. Um monstro em miniatura, que os americanos chamam de black ghost (fantasma negro). O método usado para pescá-los é extremamente interessante: naturalmente, como se poderia esperar ao se lidar com “fantasmas”, eles são pescados à noite. Lâmpadas fortes são usadas para atraí-los fora dos troncos das árvores submersas e de frestas entre as pedras. Eles são noturnos – possivelmente um mecanismo de defesa, visto que a maioria dos predadores são inativos à noite e os peixes-faca são presas valorizadas. Eles empurram os seus ovos em fendas durante a noite, mantendo-os a salvo dos predadores diurnos. Os Gimnotiformes, o grupo ao qual pertencem os fantasmas negros, têm um sexto sentido. Eles são capazes de produzir uma descarga elétrica de baixa voltagem, mas, na maioria das espécies, de alta amplitude. No caso do Gymnarchus niloticus, uma espécie africana, a corrente é notadamente constante e há pouco mais de 15 anos esse fato foi utilizado pelo Professor Florian, do L’Aquarium Tropical de Nancy, para acionar um relógio eletrônico, no qual os impulsos elétricos produzidos pelo peixe substituiam as vibrações do quartzo. Mais recentemente, o mesmo pesquisador envolveu-se no desenvolvimento de um detector de poluição biológica que utiliza o A. albifrons. As emissões elétricas de um grupo desses peixes – alguns deles pescados pelo autor – são constantemente analisadas e a presença de qualquer tipo de toxina, mesmo em pequena concentração, na água que alimenta o aquário, resulta em uma alteração do sinal que, por sua vez, dispara um alarme. Atualmente, o sistema está sendo comercializado. Hoje em dia, em Nancy, a água da torneira deve ser aprovada por esse peixe amazônico – e, amanhã, talvez o mundo ?!
Afora isso, o sarapó preto de Marajó (existem diferentes formas coloridas em outros lugares, mas a maioria delas é considerada da mesma espécie) possui olhos, mas eles parecem ser bastante redundantes; ele não somente é capaz de produzir uma descarga elétrica usando células nervosas modificadas, mas também tem um sistema sensorial especial na pele, através do qual pode detectar impulsos elétricos externos. Dessa forma, ele encontra o seu caminho na mais completa escuridão. (Para obter mais informações sobre o assunto extremamente interessante da eletricidade em peixes, veja, também, a ag no. 1 edição inglesa, Electric Fishes.)
O muçum (Symbranchus marmoratus) é outro peixe incomum, digno de menção. Ele alcança mais de um metro de comprimento e constrói um ninho singular de bolhas nos pântanos. A fêmea coloca os ovos no ninho e protege-os. Existe ainda o peixe dipnóico (= peixe pulmáso) que se enterra profundamente na lama, durante a estação da seca, para manter a umidade da sua pele e, dessa forma, sobreviver. Alguns caracídeos também fazem o mesmo.
Existem inúmeras outras espécies interessantes na ilha, mas não temos mais espaço e tempo. Felizmente, isso não se aplica a Marajó. Essa singular ilha fluvial é uma maravilha geográfica, sobre a qual poucos ouviram falar. Mais uma razão para proteger e conservar esse incrível conglomerado de belezas da Natureza e garantir que esse paraíso perdure por muitas gerações.
Texto: Heiko Bleher & equipe da ag
Texto sobre o guará escrito por Roger Leguen
Fotos: Roger Leguen, Burkard Kahl
Desenhos: aquivos da ag
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